CONTO UM 'CAUSO' DE ASSOMBRAÇÃO

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Um causo de assombração

O sítio era muito bonito. Terreno quase plano, boas aguadas, solo fértil, muita mata nativa. A cidade era longe, cerca de quarenta quilômetros. No lombo de um cavalo  era cansativo vencer o trecho. Os vizinhos eram poucos. Ao longo do carreador, vindo do povoado, o primeiro, 23 quilômetros à direita do sítio era o senhor Ildefonso, homem sisudo, de pouca conversa, pai de sete filhos, todos homens. O caçula, contavam, seria lobisomem. O menino era ainda muito pequeno, mas parecia carregar mesmo a sina. Era franzino e muito pálido, vivia calado, se escondia das visitas e ficava espreitando. A outra vizinha, doze quilômetros à esquerda, era dona Candó; viúva de pouco tempo cuidava sozinha da única filha ainda solteira. Mas a prole fora numerosa, doze filhos, nove homens, três mulheres. Metade morrera na infância, o sarampo dera cabo. Da outra metade, duas se casaram e seguiram marido, os outros se mudaram pra cidade grande em busca de estudo e oportunidades.
Dona Augusta via pouco seus vizinhos, uma vez a cada mês se encontrava com uma das mulheres para  receber ou entregar a santa da novena. Mas nas festas do povoado, dava sempre um jeitinho de ir. Dia da padroeira era sagrado. Fora isso, sua vida era trabalho árduo e constante. Enquanto o marido lidava na roça ela tomava conta da casa e cuidava do sítio com um capricho de fazer inveja. Cultivava hortaliças e flores, criava galinhas e porcos e o terreiro estava sempre varrido. Até o chiqueiro era limpo e organizado. Só parava mesmo pra dormir quando seu Manuel as sete da noite impreterivelmente apagava a lamparina. Vivia com os oito filhos. Sete, já adultos ajudavam o pai na roça. Eurípedes, o temporão, tinha apenas oito anos. Era um menino brabo e cheio de manhas. Aprendera, não se sabe com quem, muitos palavrões e parecia gostar de ser provocado para poder extravasar sua raiva recitando um rosário sem fim de palavras e nomes feios. Capeta era o favorito. A mãe, muito religiosa, estremecia quando ouvia esse nome e rezava todas as rezas para acalmar o filho. Mas jamais lhe levantara a mão. O menino não era mau, era fraquinho, vivia adoentado, por isso era nervoso. Assim ela se justificava. Tinha muita vergonha quando o menino aprontava perto das visitas. As beatas esconjuravam: "esse menino precisa é de uma boa sova".
Naquela noite dona Augusta foi se deitar mais cedo. Estava exausta. O dia foi cansativo, lavou muita roupa, preparou farinha, assou pão, bateu manteiga.  Além disso, Eurípedes não lhe deu sossego, atiçou os cachorros, meteu-se com uma galinha que chocava, afugentou os pintinhos da outra, desapareceu no meio do dia, voltou enlameado e cheio de piolhos de pombos. Foi um trabalho danado e a tarde  tornou-se curta para tantos afazeres. Felizmente o pequeno dormiu cedo e ela quis fazer o mesmo.
Mas de tanto cansaço o sono não vinha. Ela se virava na cama e as palhas do colchão faziam barulho. Seu Manuel resmungava e voltava a roncar. O ronco a incomodava. Os barulhos da noite a perturbavam. Uma coruja piou ao longe. Um arrepio lhe percorreu o corpo. Sentiu sede. Quis levantar para tomar água, mas o corpo pediu mais cama. E assim deixou-se ficar por mais um tempo. Ouviu os cachorros rosnarem, as galinhas se inquietaram, julgou ter ouvido muito longe uma música de viola. Quem estaria tocando viola a essa hora da noite? Apurou os ouvidos, o silêncio voltou. Sua garganta estava seca. Decidiu se levantar e matar a sede.
Seu Manuel tinha o sono pesado. Ainda assim dona Augusta sentou-se na cama devagar, ajeitou o camisolão, tateou no escuro a mesinha de cabeceira em busca da lamparina e do fósforo. Achou.  Andou no escuro até a porta, afastou a cortina e só então riscou o palito e acendeu a chama que clareou a sala deserta. Ao passar para a cozinha, uma brisa que entrou pela fresta da parede quase apagou a lamparina. A chama tremeu, pendeu para um lado, diminuiu, dona Augusta parou, prendeu a respiração e o fogo se recompôs. Ela depositou a luz sobre a mesa, pegou uma caneca de alumínio que estava pendurada no jirau e meteu-a no balde. A caneca tocou o fundo, o balde estava vazio. Sentiu desânimo, quis desistir, mas a boca estava seca. Devia ser quase meia noite. Teve medo de sair, mas segurou determinada a alça do balde e quando voltou-se para sair sua pernas fraquejaram. O coração disparou, o corpo arrepiou-se. Ao lado da porta, na altura da taramela, dois círculos idênticos, do tamanho de uma jabuticaba, vermelhos como olhos do mau a encaravam. Dona Augusta fechou os olhos com força, disse a si mesma que estava sonhando, era um pesadelo, ia acordar a qualquer momento. Quis abrir os olhos, mas teve medo, seus lábios tremiam. Esticou o braço e alcançou a luz, trouxe para perto da porta e abriu os olhos devagar. Os círculos haviam sumido. Devolveu a lamparina na mesa juntou o camisolão no joelho e abriu a porta. A lua cheia saía lentamente por traz de uma nuvem e iluminava o poço.  Dona Augusta lembrou-se do filho do seu Ildefonso. Seria aquilo olhos de lobisomem? Não, o menino era muito pequeno. Então ela aproveitou a claridade, encheu o balde e voltou correndo para dentro de casa fechando a porta atrás de si. Tomou a água num gole e foi para o quarto. O que seria aquilo? Poderia ter imaginado aquela visão? Sim, devo ter imaginado. O medo diminuiu, mas o coração ainda estava acelerado e seu corpo estava frio e trêmulo.  O marido dormia tranquilo, ela  deitou-se ao seu lado e sentiu conforto com o calor do seu corpo. Agora poderia dormir.
Mas não dormiu. Não queria pensar, mas aquela visão  afugentou o sono de vez. Depois de alguns minutos ouviu de novo os cachorros rosnarem, as galinhas se alvoroçaram, a coruja piou mais perto.  Virou-se para o lado do marido e abraçou-o. Restabeleceu-se o silêncio e dessa vez ela pode ouvir com nitidez uma música de viola tocando muito longe. Virou-se de costas e ficou intrigada. Era muito tarde, o vizinho mais perto estava a doze quilômetros. Mesmo que lá alguém estivesse tocando viola, seria impossível ela ouvir a melodia com tanta nitidez. Notou então que a música se aproximava, como se o violeiro estivesse caminhando em direção ao seu sítio. O som foi se tornando mais alto, mais alto, mais alto.
De repente ouviu um estalo. Uma oscilante luz amarela iluminou o quarto e ela viu uma criatura segurando uma viola. Meio homem, meio bicho. Os olhos eram grandes, esbugalhados, de um vermelho vivo e intenso, penetrante; a boca muito grande projetada pra frente sorria para ela mostrando dentes compridos e afiados. Os dedos peludos, longos e finos dedilhavam as cordas da viola com destreza e o toque produziam faíscas como as de fogos de artifícios.  Dona Augusta sentiu o corpo paralisado, quis gritar, mas a voz não saiu. Petrificada ouviu o homem perguntar pelo filho com voz firme e estrondosa:
_Aonde está o Eurípedes?
Ao ouvir o nome do filho dona Augusta ganhou força e recuperou os movimentos e a fala:
_Aonde está o meu filho você não vai.
A criatura repetiu com mais força:
_Aonde é que está o Eurípedesssss? Ele tem me chamado muito, estou aqui para atendê-lo. 
Decidida, dona Augusta sentou-se na cama, pegou a Bíblia que estava na mesa ao lado e segurou-a forte junto ao peito. Diante desse gesto o homem retrocedeu dois passos, mas insistiu:
_Eu quero ir aonde está o Eurípedes. E demorava-se na pronúncia da letra esse produzindo com isso muitas faíscas por entre os dentes. O ambiente cheirava a enxofre, o ar estava denso e dona Augusta mal conseguia respirar:
_Enquanto houver Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo, aonde está o meu filho você não vai. E levantou-se bloqueando a única saída do quarto. Nesse momento sentiu-se mais forte. O homem forçava passagem e ela o cercava  abrindo os braços e exibindo a Bíblia com fé e determinação. A cena se repetiu várias vezes:
_Eu quero ir aonde está o Eurípedesssss. Ele me chama muito. Eu quero ir aonde está o Eurípedessss. E as faíscas aumentavam produzindo muito cheiro de coisa queimada.
_Enquanto houver Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo aonde está o meu filho você não vai.
Deitado na cama, seu Manuel, agora acordado e muito assustado, via e ouvia a mulher falando sozinha e pensou que ela enlouquecera. Quis levantar-se, mas não conseguiu. Quis falar com ela, mas sua voz  não passava de um sussurro.
Enquanto isso dona Augusta lutava. Lutava e rezava. Mas a estranha criatura parecia não querer desistir:
_Eu quero ir aonde está o Eurípedesssss!
_Enquanto houver Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo aonde está o meu filho você não vai. O suor escorria-lhe pela testa, mas ela estava firme, sua fé lhe dava energia, não entregaria o filho por nada desse mundo. Nesse momento, alcançou com algum esforço o crucifixo que mantinha na parede, abriu a Bíblia numa página qualquer e começou a ler apontando a cruz para o demonio. Era o salmo 91. Aquele que habita o esconderijo do altíssimo à sombra do Onipotente descansará.
No mesmo instante a criatura se contorceu, deu um passo para traz, parou de tocar, e encarou dona Augusta revirando olhos e boca:
_Já vi que aqui não vou conseguir nada, vou baixar mais embaixo. E num estouro desapareceu. O cheiro de  enxofre se intensificou e dona Augusta correu para o quarto do filho seguida pelo marido que finalmente conseguiu se mover. 
O menino dormia agitado, mexia-se para um lado e para o outro; ela o abraçou com ternura, conseguiu acalmá-lo e prometeu a si mesmo que o levaria para a igreja e o matricularia na catequese. Pediu a Deus que o protegesse e jurou que jamais permitiria que ele pronunciasse novamente algum nome maldito.
No dia seguinte, de manhã bem cedo, alguém trouxe a notícia de que a filha de dona Candó havia morrido. Sem motivo aparente, enlouqueceu durante a noite, cortou em tiras os lençóis de seu próprio enxoval, trançou com elas uma corda e se enforcou.

NILCE SILVA




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