CONTO LÁZARO E MADALENA


LÁZARO E MADALENA


Lázaro e Madalena se conheceram num velório. Ela, quatorze anos, brejeira, impaciente e espevitada não parava um minuto. A mãe, de vez em quando, lhe pregava um beliscão, porque ela, enquanto todos choravam e faziam cara de tristes, desatava a rir por conta da cara de sonso de Lázaro. Ele, vinte e cinco anos, matuto, mas trabalhador, meeiro de sítio, arriscou uma piscadela em direção à moça para cortejá-la à distancia. De perto, lhe faltaria coragem.
 O defunto, um parente distante, teria morrido de desgosto por, sendo ele um bom e manso marido, não ter suportado os anos e anos de brigas impostos por sua mulher, agora viúva inconsolável, sempre descontente com a vida, com a casa, com o monte de filhos, com o trabalho na roça, com a cachorra que pariu, e com o marido que nunca fazia nada, embora o homem vivesse a satisfazer os desejos da insaciável.
Defunto enterrado, tristeza passada, seguiu-se a vida na pacata Guapé, cidadezinha aguacenta do sul de Minas nascida de doação de terras por parte do capitão José Bernardes. A viúva, não demorou muito, substituiu o finado por outro bonachão, viúvo corneado, que segundo contam teria derramado chumbo derretido no ouvido da mulher enquanto essa dormia. Mas de fato, ela foi atestada defunta de morte natural, pois nem o médico nem o delegado, estavam dispostos a encompridar o caso, já que ninguém naquelas bandas podia pensar que o Juvêncio desconfiasse da traição, muito menos que fosse capaz de tal ato.
O Lázaro, depois que conheceu a Madalena não teve mais sossego. Amuou, perdeu o apetite, teve febre, câimbras, calafrios. Só fazia pensar na menina, via seu gestos, seu olhar matreiro, as risadas no velório. Cuidava ter visto uma piscadela também por parte dela. Ela o amava, tinha certeza e se torturava, tímido que era, a procurar um meio de ir vê-la.
O sítio onde a danada morava com pai, mãe e nove irmãos todos já homens feitos, grandes como ursos, ficava a léguas de distancia, e o pobre diabo morria de amores, de vergonha e de medo de enfrentar aquela tropa toda. Certo dia passou na venda do “seu” Antonio, tomou umas pingas e resolveu que de hoje não passava. Pagou a conta, montou no cavalo e saiu trotando rumo ao sitio da família da moça. Na encruzilhada, topou com uns cavaleiros que chegavam à cidade e desistiu. Eram dois dos irmãos gigantes da pretendida, que pelo tamanho e pelo olhar minaram a coragem do nosso herói. E assim, o pobre homem ia adiando a investida e só contava com a missa de domingo para lançar suas piscadelas na esperança de que a moça, corajosa como era lhe dirigisse a palavra. E assim foi.
Madalena, embora não aparentasse, também gostou logo da primeira vez do jeitão simples e recatado do rapaz. Podia ser negócio.  Vou casar com ele, falou alto no dia do velório para espanto da mãe que lhe beliscou pela décima vez. O moço, embora vergonhoso, era bem apessoado, tinha os cabelos louros, caídos na testa feito galã de fotonovela; era alto e as roupas simples sempre limpas e bem passadas mais mostrava elegância do que pobreza. E mais que tudo, era ele o passaporte que ela usaria para a liberdade, já que, única filha mulher, vivia confinada e vigiada dia e noite. Certa de que era correspondida esperou durante dias que o homem aparecesse em sua casa montado em seu cavalo que não era branco, mas servia, para pedir a sua mão e marcarem logo o casamento, pois menina de família naquela época não podia ficar noivando por muito tempo. Ademais, embora ainda muito nova, Madalena, mais que o comum, era dotada daquele fogo da adolescência que as mães querem logo aplacar com um casamento para a filha não ficar mal falada.
Como o tempo passava e Lázaro não tomava coragem para procurar a família da Madalena e decidirem o pro forma, essa, entediada com a mesmice da vida pacata, resolveu mexer os pauzinhos. Assim no domingo de páscoa, na missa das dez, enquanto a comunidade reunida na igreja rezava o pai nosso, ela fez um sinal para o rapaz e saiu disfarçadamente, só não se escondendo da mãe que, por baixo do véu lhe dirigiu um olhar mortal que quase a fez desistir. Madalena titubeou, mas cochichou um já volto e saiu serpenteando entre um e outro, incomodando as carolas que balançavam a cabeça e espichavam os lábios como a dizer, essa não tem jeito. Em pouco tempo a menina venceu a multidão, desceu os degraus da porta lateral, espiou para os lados a se certificar que não havia ninguém por perto, contornou o chafariz que dividia o pátio e desapareceu para os fundos da igreja onde um pomar de mangueiras em flor convidava ao pecado. O padre negava, mas havia quem jurava que ali alguns bastardos tinham sido gerados, as fiéis queriam a extinção do arvoredo, ou pelo menos que se raleasse, mas o padre não abria mão das mangas maduras da estação e o pomar ia ficando. 
Lázaro chegou trêmulo. Os lábios sem cor e as mãos frias como de sapos causaram certo asco em Madalena, mas ela estava decidida, queria sair de casa, mudar de ares, voar, conhecer o mundo que fantasiava em seus devaneios, e no momento ele era o seu portal. Engoliu em seco, se aproximou, ele tentou balbuciar algumas palavras, ela encostou as mãos quentes em seus lábios, olhou-lhe dentro dos olhos azuis e amedrontados e beijou-lhe a boca ternamente. Dona Maroca que seguira os dois em busca de alguma fofoca, soltou um grito agudo e desesperado.
Um mês depois estavam casados. A casa, perto da cidade, era pequena, mas confortável; os móveis novos cheiravam a independência. E Madalena sentiu-se senhora de si, ignorando que se livrara do jugo do pai e dos irmãos, mas tinha um marido para controlá-la. Os primeiros tempos foram de gozo, a menina tornara-se mulher e esquecera-se da vida que levara até então, estava feliz a ponto de esquecer que tinha uma família no sitio não muito longe dali. A mãe volta e meia aparecia para ver como ela estava, os irmãos e o pai ela só via na missa de domingo que foram ficando escassas, pois Madalena, mais e mais inventava desculpas para faltar ao compromisso dominical.
Com o casamento e o tempo, Lázaro ganhou segurança. Já voltara a frequentar a venda no fim do dia para tomar a sua branquinha. A mulher que o esperasse, não vivia ela batendo perna o dia inteiro? Pois então. Mas, o sentimento de posse tomou-lhe conta do espírito e os passeios de Madalena passaram a ser-lhe um tormento. As brigas começaram. A princípio breves, eram logo esquecidas com os carinhos e os dengos de Madalena. Depois foram ficando mais tensas e intensas. Madalena já não tinha mais tanta paciência para relevar e Lázaro via em todas as ações da esposa motivos para desconfiança e desgosto. As desavenças passaram a ser diárias e Madalena sentiu que era hora de fazer alguma coisa.
A partir de então, sempre que chegava da roça, Lázaro encontrava a mulher amuada, triste, às vezes de cama. Madalena dizia que não se sentia bem ultimamente, sentia dores, cansaço não tinha ânimo para o trabalho domestico. Lázaro, preocupado, quis contratar uma ajudante, mas a mulher não aceitou, disse que era bobagem, era uma indisposição, logo passava. No dia seguinte, tão logo baixava a poeira deixada pelo tropel do cavalo de Lázaro, ela livrava-se da camisola, vestia-se com esmero e saia para os seus passeios. Voltava sempre mais cedo, a tempo de ajeitar a casa e meter-se de novo em roupa de dormir e amuar feito doente. Na terceira noite, o marido cansado de não encontrar o jantar pronto, zangou-se, reclamou, preparou aos solavancos algo para comer. Ela devia procurar um médico, assim não podia continuar, não casou para isso. Isso não era certo uai! Não era não senhora. E as brigas recomeçaram.
Uma noite depois de muito discutirem, Madalena não conseguindo dormir, pensou nos primeiros tempos de casados, lembrou que se conheceram num velório. Primo Bastião, coitado, sofreu tanto com aquela mulher infernal, estirado em cima da mesa, gelado e roxo. E ela rindo; disso ela lembrava; o homem gelado e roxo, e ela rindo; a mãe a lhe beliscar. Num estalo sentou-se na cama. O marido já pegara no sono e roncava feito um porco. Vou lhe dar uma lição, pensou enquanto olhava para aquela cara dormida com uma boca tremendo com o ressonar pesado. Ah se vou, vai levar o maior susto, e há de se emendar; deixa estar.
No dia seguinte não saiu. Gastou o tempo a limpar a casa, varrer o quintal, lavar o alpendre. Lavou e passou toda a roupa suja acumulada na semana, ajeitou os armários, cozeu as meias furadas. Preparou o melhor jantar que já fizera, arrumou a mesa com uma toalha branca de renda, do enxoval, ainda sem uso. Maquiou-se com cores pálidas, passou sombra roxa nos lábios e ao redor dos olhos e das unhas, colocou um travesseiro baixo numa das extremidades da mesa, olhou para o velho relógio na parede, herança de família, e deitou-se feito defunto, mãos cruzadas, a esperar o marido.
No campo, Lázaro, desgostoso com a briga da noite anterior, resolveu antes de ir embora passar na venda do “seu” Antonio para tomar uma pinga. Tomou um copo, dois, três. Esqueceu da hora, lamentava-se em pensamento, não queria voltar pra casa. Depois de mais algumas doses, o vendeiro resolveu intervir e convenceu o homem a ir embora. Madalena havia de estar preocupada, pensou Lázaro, com extrema satisfação.  Aquela vadia, era bom mesmo pra ela aprender. E se foi levado pelo cavalo, já acostumado com o caminho de outras bebedeiras. 
Em casa, Madalena estava cansada de esperar naquela posição incômoda de cadáver a espera de velório.  De vez em quando relaxava, mas a qualquer barulho lá fora, voltava à posição inerte e esperava quase sem respirar pelo escancarar da porta e pelo susto que Lázaro haveria de levar. Mas ele não chegava. Ela sentiu fome, muita fome. Lembrou-se da comida em cima do fogão e quis forrar o estômago. Desceu rapidamente da mesa, correu para a cozinha, cortou uma generosa lasca de pernil assado e voltou para sala. Espiou a estrada pela janela e avistou ao longe o cavalo de Lázaro; em cima do lombo do animal o marido penso para um lado, denunciava a embriagues. Madalena sentiu raiva; enfiou o pedaço de carne na boca, correu de volta para a mesa e deitou-se de súbito, tamanha era a pressa. Com o solavanco o alimento caiu inteiro na garganta trancando a passagem de ar.  Madalena quis sentar, não conseguiu, bateu com os punhos no peito, debateu-se, ergueu o tronco, mas sufocada, caiu morta para trás na exata posição que quisera estar quando o marido entrasse.
Chegando à casa com dificuldade, Lázaro não ouviu o debater da mulher, mas sentiu que algo estava errado. A sala às escuras naquela hora da noite, não podia ser, Madalena era medrosa, acendia logo o lampião assim que o sol se punha. O que estaria tramando aquela danada; hoje ela pagaria. Apeou sôfrego do cavalo, cambaleando tentou correr para alcançar a porta, mas tropeçou na escada de madeira, caiu de chofre com a cara em cima de uma pedra que usavam para limpar as botinas e morreu no ato. Ingênuo e sem susto.

Nilce Silva

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